Entrevista a Francisco George, Diretor-Geral da Saúde

Entrevista e fotos por Carlos Alberto Costa

Francisco George valoriza a crescente importância da componente hoteleira nos hospitais, considerando-a “tão importante como qualquer medicamento”. O Diretor-Geral da Saúde assume que a qualidade do alojamento se tornou decisiva no tratamento de doentes.

Na última década temos presenciado uma evolução na área hoteleira dos hospitais e essa valência constitui cada vez mais um fator de decisão. O doente não escolhe o hospital apenas pelos cuidados médicos, mas também pelas suas condições físicas, serviços prestados ou possibilidade de escolha da sua alimentação. Vê esta mudança de critério como benéfica para a melhoria do estado de saúde do doente?

É fundamental. Os serviços de hotelaria de um hospital são tão importantes como qualquer medicamento. Hoje, o bem-estar e a qualidade da componente hoteleira de um hospital é reconhecida por todos como tendo um papel decisivo. Os hospitais de hoje já não são, como no passado, lugares precários. É importante a qualidade hoteleira e tudo o resto que esteja relacionado com o bem-estar dos pacientes, incluindo aspetos como o design dos espaços ou a decoração. A hotelaria, sublinho, é hoje indispensável em termos de facilitar o tratamento dos doentes e é-o também numa perspetiva humana.

Sendo assim, os serviços públicos não deveriam apostar mais neste conceito?

Sim, e as indicações que têm vão no sentido de tornar as instalações mais humanas, mais acolhedoras, mais coloridas, esteticamente mais próximas do que seria um alojamento normal.

Na hotelaria hospitalar existe alguma estratégia para a qualificação dos recursos humanos por parte da DGS, por exemplo no caso dos assistentes operacionais e em particular nas áreas da infeção hospitalar?

Essa matéria tem sido motivo de preocupação por parte dos serviços do ministério, exigindo uma constante elevação da qualidade e, para tal, é preciso qualificar as pessoas que estão ligadas aos serviços hospitalares nas suas variadas valências. Há necessidade de qualificar as pessoas e isso, sendo uma questão de elevado interesse, nunca pode ser ignorada. E não o tem sido.

As empresas prestadoras de serviços nas áreas de limpeza, recolha e tratamento de resíduos, alimentação e desinfestação, enquadram-se na mesma estratégia? Por exemplo, a certificação de empresas que operam em meio hospitalar.

Estamos envolvidos em programas de acreditação e certificação das diferentes unidades. Essa componente é essencial.

Mas há uma estratégia no terreno?

A estratégia é baseada no princípio da melhoria contínua.

Está a dizer-me que existe essa intenção…

Não é um problema de intenção mas sim uma questão estratégica, de melhoria contínua de todos os serviços, com uma componente ligada a esta questão que referiu.

E em que contexto é feita a certificação destas empresas que operam em meio hospitalar?

A certificação das empresas não é um problema diretamente ligado às competências da DGS. O que lhe posso dizer é que, no contexto da acreditação e certificação das unidades hospitalares, é avaliada a forma como os serviços de hotelaria são fornecidos, nomeadamente a alimentação.

Estamos então a falar de uma certificação indireta?

Sim, pode dizê-lo dessa forma. Não temos programas que visem a certificação das empresas prestadoras, isso não é matéria da competência da DGS ou do Ministério da Saúde. Será mais do lado da Economia.

Um estudo de 2012 situa a taxa de infeção hospitalar em Portugal em 10,6 por cento, mais do dobro da média europeia. Um relatório mais recente ‘Portugal – Prevenção e Controlo de Infeções e Resistência aos Antimicrobianos 2015’ refere 12 mortes por dia. Aliás, o próprio secretário de Estado da Saúde, Fernando Araújo, que apresentou este estudo, diria que "se morre 7 vezes mais por infeções do que nos acidentes de viação". Qual é o seu comentário?

Não posso fazer essa leitura do problema. O problema das infeções existe em todo o Mundo. Nós não sabemos se a nossa taxa é, ou não, o dobro dos outros países da Europa. Sabemos que medimos com grande rigor os novos casos de infeção, mas não sabemos se os outros países aplicam o mesmo rigor. Só poderíamos afirmar que estamos numa posição em que a frequência é dupla se os outros países medissem os casos de infeção da mesma maneira que nós.

O que é que o leva a crer que não o fazem?

Sabemos que pode não acontecer. Em Portugal comunicamos e notificamos todos os casos de infeção que surjam em ambiente hospitalar, a partir o laboratório. Não posso dizer se o mesmo se passa em outros países.

Essa desconfiança seria invocável para qualquer estatística sobre qualquer tema.

Tem razão, mas uma coisa é medir fenómenos facilmente verificáveis, outra coisa é medir um que não se verifica facilmente, como é o caso deste, que vem a partir de uma placa de cultura de bactérias e é preciso saber lê-la e saber comunicar, e isso é uma leitura direta a partir do laboratório. Não lhe posso dizer se os outros países seguem com este rigor o que nós fazemos. É verdade que as infeções são um problema e é verdade que em termos culturais chegámos tarde, mas também é verdade que ainda vamos a tempo de controlar estes problemas se todos participarem.

De que forma se inverte esta estatística negra?

É preciso reforçar as medidas de higiene individual de todos aqueles que frequentam os hospitais, desde os doentes aos visitantes, e também quem lá trabalha, pois o hospital é o ambiente ideal para se transmitirem infeções. Todos os visitantes de hospitais deviam, à entrada, lavar as mãos com solução, coisa que não acontece nos hotéis. Esta parte é diferente. Depois, há um conjunto de medidas que ainda não estão perfeitamente incorporadas no trabalho diário. Mas também no que respeita à leitura das causas de morte, é necessário ter em atenção que os doentes evoluiriam, ou não, no mesmo sentido, se estivessem ou não infetados. Pense, por exemplo, num doente com 89 anos internado, diabético, que foi entubado, que tem uma descompensação cardíaca e apresenta uma insuficiência respiratória. Neste caso, a infeção, mesmo a ocorrer, não será a causa da morte, embora a entubação muitas vezes permita a transmissão de infeções. Dou-lhe outro exemplo: um doente que tem uma anemia provocada por uma hemorragia gástrica ou varizes do esófago e que tem um cancro do estômago. Morre devido ao cancro ou em anemia aguda? A questão das infeções hospitalares tem muitas leituras.

Percebe-se que dificilmente haverá acordo em relação a estes números. E será por isso que há uma evidente parcimónia em reconhecer esta situação. Por exemplo, sempre que há casos com vários óbitos consecutivos no mesmo hospital, e há fortes suspeitas de infeção hospitalar, a primeira preocupação das administrações é virem a público assegurar que os casos não estão relacionados…

O que posso dizer é que há doenças que têm que ser tratadas em meio hospitalar e outras não. A grande lição a tirar é que se deve ir ao hospital apenas quando é estritamente necessário. As pessoas podem utilizar a linha Saúde24 antes de correr para o hospital, a não ser que se trate de um acidente, uma emergência. E o visitante nem sequer deve lá ir. Um hospital não é um local de romagem, porque as infeções da comunidade também são levadas para dentro.

Que medidas devem ser tomadas ao nível da lavandaria para ajudar a conter a proliferação das infeções?

O serviço de lavandaria é mais um ponto comum com a hotelaria mas com maior importância, pois estamos a falar de roupas de cama que contêm secreções, líquidos orgânicos, problemas que se podem transmitir. Porém, não há hoje problema algum com as roupas tratadas em hospitais. É uma área totalmente segura.

Justifica-se uma auditoria à higienização dos hospitais?

As auditorias são sempre bem-vindas e são feitas com regularidade. Mas também lhe digo que é muito importante multiplicar auditorias com carácter pedagógico. Sabemos que a seguir a uma auditoria, os indicadores de qualidade e boas práticas melhoram.

De uma forma geral, o que pensa acerca da forma como são controladas as superfícies clínicas (quartos de doentes, enfermarias, etc.)?

Não temos problemas de higiene nos espaços físicos. As superfícies são lisas e laváveis, e a libertação de cloro por via do uso de lixívia, um produto acessível, assegura níveis de desinfeção muito altos, quer para vírus quer para bactérias, em todos os hospitais ou em unidades em que as pessoas pernoitem. Há também que sublinhar que os hospitais portugueses são novos, com exceção de algum parque que agrega os antigos Hospitais Civis de Lisboa. As restantes principais unidades são de construção recente, de boa qualidade geral e bem equipadas.

Como fazer este controlo das superfícies clínicas e que métodos utilizar? Com metodologias de avaliação qualitativa ou microbiológica?

Com ambas. São também feitos estudos de contaminação através de métodos de colheita. Não temos grandes problemas nessa área e quando surgem são combatidos à luz dos protocolos existentes para estas situações, com o isolamento de doentes e adoção de mecanismos de aprofundamento da higienização e desinfeção. Nestas ocasiões fazemos sempre o que está ao nosso alcance.

Admite a possibilidade de uniformizar as práticas de controlo de infeção através da criação de comissões e grupos de trabalho que intervenham em diferentes hospitais?

As comissões estão criadas nos hospitais. É certo que as administrações devem investir mais, mas também não devemos ir por um caminho que faça pensar que nada se faz. Repito o que lhe disse antes: o hospital é o local ideal para atender doentes, desde que necessitem de ser hospitalizados. Nessa medida é insubstituível e temos a garantia de boas práticas.

O turismo de saúde é uma possibilidade real em Portugal?

É uma realidade que está ao nosso alcance, pois temos condições excelentes. Interessa ao país em termos de investimentos estrangeiros em Portugal. A nossa medicina é muito avançada e as nossas condições ambientais e climáticas são excelentes, portanto, temos tudo o que é preciso para receber pessoas de qualquer parte do globo para serem tratadas.

Não lhe levanta dúvidas que estruturas pagas com os impostos não possam ser colocadas ao serviço de todos, e serem usadas no turismo de saúde?

Não vejo a questão assim. Um estrangeiro que seja operado no Algarve paga, traz divisas. Hoje, a mobilidade no contexto da União Europeia está devidamente regulamentada e os países de origem pagam pelos seus doentes. Há um acerto de contas.

Considerando o número de famílias com dificuldades em aceder a alimentos básicos, essa dificuldade poderia ser ultrapassada com acesso às cantinas hospitalares?

Dir-lhe-ia que sim, mas no que se refere às cantinas escolares. Sempre defendi que nas zonas mais pobres do país, estas não deveriam encerrar durante as férias e deviam ser acessíveis, até porque têm hoje mais qualidade alimentar do que antes, pois são mais reguladas. Quanto às cantinas hospitalares, não têm vocação para esta ajuda, não se enquadram.

Como caracterizaria a situação atual da nossa Saúde Pública, valendo-se até da sua experiência de anos na Organização Mundial de Saúde (OMS)?

A Saúde Pública em Portugal, ao contrário do que muitos pensam, é muito gratificante, uma vez que o patamar onde nos encontramos é reconhecidamente muito elevado. Por exemplo, no que respeita à proteção da mãe e da criança, temos uma posição cimeira a nível global. Estamos entre os cinco melhores países no Mundo no que respeita a este índice. Para além disso, temos elevado reconhecimento pelo trabalho que conduzimos em todos os níveis da medicina, como nos transplantes e em outras áreas. Estamos a trabalhar no contexto europeu sem qualquer problema de inferioridade, diria. Temos patamares muito bons de desenvolvimento em saúde. É claro que você vai dizer-me já a seguir que não é isso que transparece em termos de imagem. Reconheço que não é, no entanto, no conjunto medido pela evolução dos indicadores, há a certeza de que estamos no bom caminho, isto sem negar que, pontualmente, há problemas que têm de ser resolvidos, como aqueles que a imprensa relata.

Houve há tempos, por exemplo, alguma polémica sobre os números da Organização Mundial de Saúde (OMS) relativos à tuberculose em Portugal…

A questão da tuberculose tem uma história de grande dificuldade em Portugal. Nós melhorámos a incidência da tuberculose e, neste momento, temos um valor de novos casos que é de 19, 3, inferior a uma linha vermelha das duas dezenas. Concordo que a tuberculose não é o nosso melhor exemplo. Temos outros que colocam Portugal no lado do sucesso, como os relativos à rubéola, ao sarampo ou à parotidite, doenças eliminadas, a par de outras. E isso é uma conquista que muito se deve ao programa de vacinação, aliás muito bem gerido pela minha colega Graça Freitas, que é a Subdiretora-Geral da Saúde, colocando Portugal entre os países com programas de vacinação mais eficazes.

Que grau de prontidão temos para estes tempos em que as epidemias, entendidas como riscos globais, estão a regressar (Sida, Gripe das Aves, Zika, Ébola)?

Já foi demonstrado que para responder a esse tipo de desafios estamos preparados ao nível de qualquer outro país da União Europeia, incluindo os do norte da Europa. Temos muita experiência de identificação precoce de problemas e de correspondentes planos de contingência. Sempre assim aconteceu na Direção-Geral. É claro que tivemos de afinar planos. O Ébola, há bem pouco tempo, constitui um grande problema na África Ocidental, com quem mantemos uma verdadeira ponte aérea devido aos laços que nos unem, mas também para o Zika e outras doenças que se transmitem por vetores e que constituem situações às quais devemos estar atentos, pois têm tendência a surgir de um forma mais intensa devido, sobretudo, às alterações climáticas e ao aquecimento global que tem transformado zonas temperadas em zonas subtropicais e, desse modo, com condições de clima mais propícias ao desenvolvimento de vetores de doenças.

Diria então que o grau de prontidão é adequado à ameaça?

O grau de prontidão é o equivalente ao existente em qualquer país na União Europeia, como lhe disse. Trabalhamos com o Instituto Ricardo Jorge, mas também com o INEM, com o Instituto Nacional de Meteorologia e com a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária. Em conjunto temos conseguido encontrar respostas.

As campanhas públicas de prevenção são geralmente em tom de “português suave”. A comunicação não tem que ser mais assertiva?

Precisamos de ser mais exigentes em todos os domínios, a começar pelo investimento na prevenção. Temos de mobilizar mais recursos e potenciar a parte da evitabilidade. Não só a comunicação tem de ser assertiva mas também as medidas que se seguem. Os interesses da população têm de ser colocados no topo. Quando a lei do tabaco foi implementada, a 1 de janeiro de 2008, os cidadãos respeitaram mais a lei do que qualquer outro código, porque houve boa comunicação, fazendo perceber que fumar dentro de um restaurante fazia mal à saúde de todos, incluindo dos que não fumam.

Os dois principais problemas de saúde dos portugueses chamam-se ‘açúcar’ e ‘sal’?

São fatores de risco em relação à saúde. Ambos evitáveis. Sabemos que o açúcar em excesso está na origem da diabetes. O açúcar para ser metabolizado precisa da presença da insulina que está no pâncreas e esta não é suficiente para durar a vida toda, muito menos neste imenso prolongamento de vida que temos. Por isso devemos, desde muito cedo, poupar insulina, e isso faz-se ingerindo menos açúcar e tendo uma atividade física mais presente. O sal também é um fator de risco que nós podemos modificar. Os portugueses ingerem mais do dobro do sal que deviam ingerir. A solução é reduzir para metade, condimentando os alimentos com ervas aromáticas.

Mas nesta matéria há um obstáculo muito presente que é a indústria alimentar.

A indústria alimentar tem de compreender que o país não progride com estes níveis de hipertensão arterial, que está na base do enfarte do miocárdio ou do AVC. Para os reduzir temos de ingerir menos sal. A indústria não pode estar na origem dos males em Portugal. Temos de ter a saúde presente para todas as políticas. Repare numa coisa: Se a mãe de uma criança de 7 ou 8 anos souber que uma lata de refrigerante contém o equivalente a 8 pacotes de açúcar, acha que ela vai dar esse refrigerante ao filho?

Provavelmente não.

Claro que não. O problema é que a mãe não sabe ou ainda não pensou bem no assunto. E o que fazemos então? Ou reduzimos a presença de açúcar nos refrigerantes, ou a criança tem de ter acesso fácil a água potável fresca de qualidade. E nós temos um programa de luta contra a obesidade e a diabetes com a multiplicação de pontos de água em tudo o que é lugar público. Nos hotéis também. Ou seja, quem bebe água não paga e não tem de beber refrigerantes. Esse é o caminho. Água e trotinete é a melhor fórmula para as crianças.

A globalização, já se viu, não é propriamente boa para a Saúde, até porque promove a rápida propagação das doenças. Num artigo seu recente sobre o tema, questionava as interações existentes entre globalização e saúde. E questionava sobretudo se não haveria forma de elevar os efeitos positivos. Quais?

Os efeitos positivos são, sobretudo, a produção e a utilização de conhecimentos científicos. Hoje, uma descoberta importante em qualquer ponto do globo traduz-se imediatamente na transmissão desse conhecimento. O problema está depois no acesso e nós temos, ainda, no que respeita à globalização, um fosso entre países. Há problemas de acesso, problemas ambientais, dificuldades para aplicar conhecimentos científicos, provocando iniquidades e desigualdades intoleráveis. A probabilidade de viver que tem uma criança que hoje nasce em Bissau é muito diferente de uma criança que nasce em Lisboa. E isso é uma injustiça. De que serve termos uma vacina contra o cancro do colo do útero se as crianças portuguesas podem ser protegidas mas as guineenses não? A globalização não resolveu este assunto. A globalização não tem resultados positivos em Saúde Pública, se é que tem em outras áreas…

Abandonou a candidatura a membro do conselho executivo da OMS. Porquê?

É verdade. A Itália não pertencia ao conselho executivo há mais anos do que nós e por isso decidiu reclamar a primazia e ocupar o lugar. Portugal retirou a candidatura e fizemo-lo com a maior compreensão.

Francisco George, o rosto que os portugueses se habituaram a ver na primeira linha a enfrentar as crises sanitárias, trabalhou com 8 diferentes Ministros da Saúde. Filho de um médico, formou-se com distinção na Faculdade de Medicina de Lisboa e trabalhou durante uma década na Organização Mundial de Saúde. É Diretor-Geral de Saúde desde 2005. 

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